Venus Veticordia é a grande inspiração para o Levi

Conto — Leviatan e a Corte da Primavera

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Spoilers do livro Os Cavaleiros do Inverno. Esse conto acontece após o prelúdio e pode ser lido em ordem, ou em qualquer momento depois.

(Repostando porque eu queria corrigir o título e o Medium estava bugado!)

Todos os demônios tem algo que eles desejam ardentemente (Libido). Esse desejo é o mais próximo que eles tem da necessidade de nutrição. A ausência de perseguir a Libido torna a alma doente e o espírito fraco.

Leviatan, um Incubus, se alimenta do prazer alheio, algo que é muito prática na sua posição de servo.

Sindri, um Dominatus, se alimenta da dor e do medo. Entretanto, essa libido não foi lhe dado pela natureza, mas forjado por encantos distorcidos para que ele se tornasse um bom soldado. Por motivos desconhecidos, Sindresh desafia a ordem natural da sua espécie. Seu espírito clama por misericórdia e respeito, embora perseguir esses valores lhe cause angústia.

Leviatan, porém, não se importa de sangrar um pouco mais se é para aliviar essa tristeza.

Aviso de Gatilhos: Medo, sangue e trauma.

Um epílogo sereno da carnificina. O jardim rodeado por paredes vermelhas estava em silêncio. O vento sumira, as nuvens tinham coberto o sol, e o as únicas criaturas despertas eram as abelhas que se reuniam ao redor da poça de sangue, afogando-se na delícia. Eram canibais de magia e desejo.

O senhor delas, aquele anjo de pele pálida e cabelo de cobre, rolou pelo chão procurando apoio para se erguer. Cada movimento era um gancho, uma fraqueza, algo dele que se esvaía. Respirar era difícil, seus olhos se embaçavam, parecia que alguém tocava uma música alta e ensurdecedora, porém era apenas a pulsação na sua cabeça. Que corpo estranho, cheio de líquidos e fibras que ardiam, pulsavam e doíam! Mas em especial ardia a ferida escura abaixo das costelas. Ele estava a salvo da magia que iria destruí-lo e não havia mais hemorragia para drenar sua vida, porém ninguém iria costurar aquela fenda sinistra. Ninguém iria curar seu olho marcado pelo chicote

Danial tinha tirado tudo dele, outra vez.

Ainda assim, ria. A onda de euforia escapava entre seus dentes com sons aflitos, meio bêbados, escorrendo rubra pelo queixo pálido e pingando na relva. De todos os membros da sua espécie, Leviatan era o único que ainda tinha alguma memória dos antigos corpos físicos que todos eles vestiram no princípio da existência há bilhões de anos atrás. Aqueles corpos sangravam em fios perolados de fumaça fina. Tinha de concordar, porém, que o vermelho era tão mais bonito…

Ele conseguiu se erguer nos joelhos, olhou por cima do ombro. A figura de negro estava por perto. O homem alto e ofídico não lhe olhava, sequer respirava, estava parado num meio passo querendo se retirar, mas simplesmente não conseguia. Leviatan ria, mas Sindresh tremia. O sangue pingava, o Cortesão se contorcia, mas o General só conseguia perceber seu próprio coração batendo forte. O desejo lhe deixava à flor da pele, atento, sentindo os almiscares, ouvindo os gemidos. O prazer, mesmo ínfimo, era o suficiente para produzir igual efeito no Incubus ferido.

Leviatan estendeu sua mão sardenta e suja de escarlate para Sindresh. O General soltou um som de protesto, o rosto se contorcendo de fúria. Que situação engraçada, Levi pensou, nenhum Dominatus hesitaria em tomar uma dose tão gratuita de seu prazer. E Sindresh precisava, como precisava, tanto tempo adormecido, devia estar sedento. Alguém como ele podia passar milênios em combate antes de se dar por satisfeito.

Conversavam sem voz, só com intenções.

Danial não se importará de me ver sofrer um pouco mais, Levi oferecia com seu olhar meigo. Sindresh fazia uma careta, demonstrando pouca preocupação com as intenções do duque.

Ah, mas se importa comigo, é isso? Levi abriu o sorriso delicado. Sindri fechou os olhos e o Cortesão se viu encarando as próprias dúvidas. Naquele curto embate tinham descoberto tanto um do outro. O que mais ele guardava? O que mais podia temer?

Eu não quero nada de você, o General pareceu dizer. Ele também tinha sido marcado pelo chicote e o vergão vermelho se desenhava no seu peito. Levi apenas imaginava o que aquele feitiço terrível fazia com Sindri. Porém, tinha como descobrir.

(Dentro de Leviatan, o encanto tecia uma repulsa profunda, uma vontade enorme de largar a própria existência para trás e seguir para outros caminhos. Levi tinha medo, Levi tinha vergonha e Levi tinha arrependimentos. Mas também tinha algo a cumprir antes de desistir de tudo. Ao contrário do que Sindresh imaginava, ele jamais se permitira ser desfeito tão facilmente.)

— Me ajude a deitar na minha cama? — Levi disse choroso — Por favor…

Sindri soltou um silvo e finalmente se aproximou a passos ligeiros. Puxou o servo pelo braço como se não tivesse peso. Quando as pernas do ruivo falharam em se fincar no chão, Sindri passou os braços ao redor do corpo magro, apoiando ele junto de si. Eles eram da mesma altura e se olhavam nos olhos daquela maneira. Levi sentia a respiração quente do general desenhando arrepios na bochecha. Riu e deixou sua aura se escorregar, se enrolar na dele.

Sindresh estava trancado para o mundo, mas Leviatan abria cada uma das suas trancas com magia travessa. Sindri soluçou, fez que ia soltá-lo e empurrá-lo, mas era Levi que o segurava agora. O jogo mudara. Dentro do abraço apertado que envolvia seu pescoço, Sindresh viu os fios brancos daquela aura quente lendo cada um dos detalhes da sua. Sua tristeza, seu desespero.

Levi não riu, apesar da vontade. Sindresh estava em seus braços e não podia espantá-lo dali. Passou os lábios pelo queixo, pelas bochechas fundas, pela boca torcida de raiva. Sindri rugiu baixinho. A boca de Leviatan estava cheia do gosto de sangue. Tão frágil, tão ferido, maldito manipulador barato. Leviatan era tão cruel e maldoso quanto Danial. Era uma das poucas criaturas no universo que merecia qualquer mal que lhe fosse feito.

Sindri podia praguejá-lo o quanto quisesse. Me dê seu ódio, me dê sua raiva, tome de mim cada um dos sentimentos que precisa, meu senhor. Leviatan sentiu o arrepio das unhas no seu escalpo, dos fios puxados. Sua cabeça obrigada a virar num ângulo doloroso enquanto destes cravavam-se na sua carne. Ele não gritou ou tremeu. Deixou aquele corpo pesado e frágil sentir os arrepios da nova dor, deixou as imagens de medo e fuga encherem sua mente, deixou os hormônios de pânico correrem por si. Os dentes iam cravando, cortando, rompendo vasos e veias, trazendo a tona aquele vermelho de novo.

E Sindri, faminto Sindri, abstinente, resistente, sentiu o medo vibrando naquela aura pálida e delicada. O aroma do sentimento veio e o general sorveu dele num gole de um bêbado que reencontrava seu mais absoluto vício, sua libido na forma mais pura. Não era, de maneira alguma, um banquete. A cena que ocorrera naquele mesmo quarto há poucos minutos com o feitiço de corrupção, aquilo sim fora uma deliciosa refeição que enchera Sindri de um gozo arrebatador.

Em nenhum momento, porém, ele se permitiu delícia e êxtase. Era repulsivo que ele se deliciasse com a iminente destruição de um aliado. Seu mal estar era tão maior que qualquer prazer, ele só sentira a vontade insana de punição, o desejo de vomitar. Agora, porém, que ele se permitia o prazer de torturar uma criatura, as sensações eram tão amenas que mal podiam se chamadas de prazer. Leviatan não era um décimo tão frágil e doce quanto podia parecer. Era uma criatura velha e desperta como ele, havia pouco no universo que de fato o assustava.

Sindri invejava que ele tivesse encarado o abismo e o esquecimento com tanta coragem. A mesma sabedoria, porém, o tornavam numa refeição medíocre.

— Sindresh… Meu senhor… — o gentil Leviatan disse, encorajando — Não há nada que… Você possa fazer que vá me ferir de verdade. É apenas uma sensação momentânea.

Sindri suspirou, lambendo a pele machucada. As manchas vermelhas subiam e logo estariam roxas. Uma bela pintura de cores de morte.

— Eu sei — Sindri admitiu. Aquele era todo o problema.

— Ah… — Levi considerava o que dizer. Sentiu um arrepiozinho frio, decepcionado por não conseguir cumprir sua promessa de prazer. Era maior ofensa que um Incubus poderia sofrer.

— Não funciona — o General fingiu apatia — Você não está em risco, você não está com medo, esta dor dócil é insignificante. Mas… É melhor assim.

Sindri lambeu a pele de novo. Podia sorver a sensação de mais duas mordidas e se dar satisfeito. Seria mais do que conseguira em muito tempo. Prazer sem culpa. Não o suficiente para o silêncio, mas um pouco de alívio… de paz…

Levi balançou a cabeça.

— Sabe o que me assusta? — ele disse meigo, lambendo a boca do general. Aquilo foi interessante. Mesmo que Sindresh não se importasse com paixão, aquele corpo de carne que ele vestia se importava muito. Abriu a boca e deixou a língua ensanguentada raspar na própria. Soltou um som seco, encaixou seus lábios aos do Incubus. Eles respiraram fundo o fôlego um do outro. Sindri capturou aquela carne macia entre os dentes, mordeu-lhe rápido e ferozmente.

O arrepio de surpresa fez Levi protestar, de novo aquele choque no cérebro calando tudo exceto por um pânico animalesco e humano. Dor gerando prazer, prazer gerando satisfação, a troca mútua entre eles.

— Me conte — Sindri suspirou.

— Me ajude a chegar até a cama.

A cama era um cobertor sob a sombra de uma das árvores, um trecho de terra fofa e grama alta, amassada. Levi sentou-se, puxou Sindri com ele, virou, penteou o cabelo ruivo com os dedos para ficar por cima de apenas um ombro. Oferecia a carne exposta para o General. Ficaram ali sob o Sol escaldante. Os dentes entraram fundo na pele macia do ombro, beliscando sem dó. Leviatan fechou os olhos naquela agonia que alimentava ambas as auras ao mesmo tempo.

— Quando eu… Ghn… — Dedos ossudos no tecido, a sensação das pernas de Sindri tremendo junto das dele — Não faz muitos milênios, Danial veio até mim. Você sabe que eu não saio da fortaleza, mal vejo o rosto dele ou fico sabendo suas intenções para mim. Mesmo quando tenho uma ordem a cumprir, recebo-a por mensagens e secretários. Daquela vez, o Duque veio até mim, me deu sua capa para vestir, me tirou dos grilhões e do harém oculto em que eu ficava.

O prazer irradiava em ondas, do topo da cabeça até o ventre, então subindo de novo. Aquele corpo mortal engraçado. Sindri moveu-se um pouco para o lado, raspando a pele. Segurando o servo no lugar. Levi continuou:

— Eu me perguntava o que estaríamos indo fazer. Danial agia sempre tão misterioso, tão estranho e silencio naquela época… Não havia carruagem nos esperando, nem séquito, nem um visitante que eu deveria agradar. O castelo estava vazio e eu… Eu senti medo. Se ele não me tirava do harém para me exibir para seus convidados, então… Por que?

Sindri sentiu a aura suave tremeluzir, ouviu o coração apertado se acelerar. O primeiro gosto de temor lhe veio, fazendo-o fechar os olhos e lamber os lábios. Não havia como aquilo ser mentira. O General se afastou o suficiente para soprar o ferimento. Imaginava que tipo de expressão estava no rosto de Leviatan, mas o cabelo ruivo escondia.

A voz dele saiu mais baixa.

— Por todas as eras que eu servi, Sindri, eu nunca havia visto aquele quarto. Agora, às vezes, eu o vejo em meus pesadelos. Estará sempre gravado na minha alma. As paredes de aspirais dançando, a magia fria rodeando cada mosaico, cada coluna, fluindo para fora da sala e levando qualquer paz que eu tinha com ela. Bastou uma passo para dentro e minha mente inteira se contorceu. Me senti gélido, desconectado, distante. Eu fui arrancado do presente porque o tempo ali não fluía. Minha percepção parecia um rio, hora consciente de si em um ritmo lento e sonolento, hora entrando em correntes de pensamentos longos e incoerentes, de palavras desconexas, imagens, desenhos, luzes. Eu sentia muita dor.

— E ela estava lá, Sindresh. Alta e afiada, aquele fantasma de destruição olhando para mim com suas orbes de chamas aniquiladoras. Aliannama’Ra. Havia correntes sendo escritas no meu pescoço, em cada segmento do meu corpo, nos meus punhos e barbatanas. Eu sabia que eles iam fazer uso de mim em algo horrível, algo que iria me machucar, mas não havia para onde correr. Não havia como fugir. Uma palavra de Danial e eu fiquei paralisado.

Sindri bebia a angústia crescente.

— Você não precisa me contar — Sindri disse, mas Leviatan tinha se entregado à meditação para reviver aquela lembrança. Estava em outros tempos, outro corpo, outra sala, outro nível de existência. E estava frio e trêmulo, relaxado, adormecido. A única resistência era o coração batendo rápido, lutando para sobreviver.

Sindri aconchegou o Servo junto de si, deixou-o deitar em seu abraço. Só então pôde ver os lábios pálidos, o sangue seco neles. O jardim estava abafado, o ar úmido estagnado, o cheiro das flores tão repulsivo que lhe dava um certo nojo.

— Eu fiquei de pé ali numa eternidade, minha mente sem jamais interromper o ciclo louco de consciência e alucinações. Cada vez que eu tinha um momento de lucidez, eu rasgava o manto para lutar contra o desespero, olhava em volta e eles estavam simplesmente trabalhando em mim como se eu fosse uma escultura, uma fórmula incompleta. Cada runa escrita me empurrava mais fundo naquele pesadelo estranho. Sindri, ela estava sempre rindo! Eles conversavam amenidades enquanto me faziam enlouquecer. Eu sentia minha aura escorrendo, esfriando, tremendo, e eles riam!

— Eu nem conseguia implorar, não conseguia lutar contra, só conseguia descer e descer pelo espiral no qual eles me empurravam. E, quando me dei por mim de novo, eu estava caindo. Eu não tinha corpo ou forma, só a percepção doída de que eu estava afundando. E eu estava… Sindresh… Sindresh… Eu estava indo para outro lugar.

Agonia, doce e musical. Sindri encostou sua boca perto dos sussurros ansiosos e mordeu outro naco de carne. Leviatan gritou. Aquela dor mínima estava levando-o para outro lugar, trazendo lembranças piores a tona. A corrente de medo chicoteando entre eles, Sindri se afastou e segurou-o (a toa, porque Levi não se mexia, não lutava, apenas estremecia), mordendo de novo e de novo e de novo, marcas fundas e roxas. A mordida era a dose certa da ânsia de destruir e Leviatan estava reagindo da maneira perfeita, com o desespero certo.

Sindri quase conseguia ignorar a repulsa de si mesmo e da história que ouvia.

— Nós esquecemos o que é existir nos planos densos, nos níveis pesados onde cada emoção pode se transformar numa tempestade e te partir em pedaços. Eu não conseguia erguer a cabeça, não conseguia me mexer. Havia tão pouca luz e eu só via sombras, a princípio, e à medida que eu caia mais e mais, eu vi as silhuetas.

Havia lágrimas nos seus olhos fechados e ele soluçava. O medo era tão delicioso! Limpo, puro, ausente de qualquer esperança, de consciência. Era incrível como todos eles tinham e teriam milhares de momentos como aquele ao longo da existência, mas cada um sempre pareceria terrível e derradeiro. Nenhum deles conseguia lutar diante do desespero.

— Sindresh… Você sabe o que aconteceu com os filhos da Primavera que não conseguiram se adaptar depois da primeira Guerra?

Ah. Sindri sabia bem. Ele tinha pessoalmente enviado muitos deles lá para baixo.

— Eles estão lá ainda, Sindresh. Eu vi as torres escuras das cidades que eles construíram. Eu senti suas mordidas, suas espadas, suas magias. Quinze bilhões de anos depois. Destruídos, vazios, se contorcendo, meus irmãos…

Sindri sentiu o corpo todo de Levi convulsionar. Qualquer sensação que ele tinha na mente, era muito pior que qualquer coisa que Sindri pudesse lhe dar, então apenas encostou sua testa à dele. Como o verme que era, se alimentou da carniça, da podridão, dos restos, do medo, do sangue, da dor. Lambeu as lágrimas e deixou os gritos subirem pelas paredes do jardim até que Levi esvaziasse aqueles pulmões mortais.

Era delicioso, um êxtase como nenhum igual, e nojento.

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